LEITURAS


 

Peguei ranço de algumas expressões.

“Problematizar”, por exemplo.
Era para ser só é “um jeito de olhar para objetos e situações comuns com o distanciamento necessário para que houvesse uma desnaturalização, uma desconstrução das noções de certo e errado”. Pelo menos foi como definiu Foucault.
Virou uma maratona de procurar pescoço em minhoca.
Problematização que é problematização não conclui, jamais, que minhoca não tem pescoço: deduz, depois de muito blábláblá, que ela é um pescoço só, de cabo a rabo. Para depois problematizar que lado é o cabo, que lado é o rabo.
“Desconstrução” é outra. Para Derrida, ela é “um processo de análise crítico-filosófica que tem como objetivo imediato a crítica da metafísica ocidental e da sua tendência para o logocentrismo”. Entendeu? Pois é. Muita gente também não.
Desconstruir passou a ser sinônimo de escangalhar um paradigma e botar outro no lugar.
“Tradição” era “passar algo adiante” e se transformou em “ficar agarrado a algo lá atrás”.
Em nome da tradição é que se perpetuam as touradas, o massacre de golfinhos na Dinamarca e no Japão, a mutilação genital feminina, o trote violento e a batata palha no estrogonofe. Quando “tradição” vem, na mesma frase, junto com “família” e “propriedade”, aí é que a marcha a ré é engatada para valer.
Tradição boa mesmo é a do pão de queijo com café de coador de pano. E, claro, a escola de samba de Campinho.
“Estadunidense” é outra que não desce.
Se quem nasce nos Estados Unidos da América não for americano, mas “estadunidense”, o gentílico do Reino Unido da Grã-Bretanha não deveria ser “britânico”, mas “reinunidense”. Você e eu, nativos desta valorosa República Federativa do Brasil, teríamos que cantar “Eu / sou republicafederativense / com muito orgulho / e muito amor / ôôôr”.
“Bozo” era um palhaço. Sem graça. Eu era mais o Cacareco, o Arrelia, o Carequinha.
“Lula” era um personagem meio lelé, de desenho animado. Também sem graça. Eu era mais o Muttley, o Maguila, a Pantera Cor de Rosa.
Peguei ranço desses dois também.
Como peguei agora de “romantizar”, que deveria ser apenas “tornar romântico, tornar mais ameno, idealizar, projetar num mundo utópico”. E virou o quê? Ver as coisas do seu jeito, não do meu.
Houve redução na poluição do ar e dos oceanos (“Você está romantizando a pandemia. ”). Ter saudade até que é bom, é melhor que caminhar vazio (“Você está romantizando a depressão, o abandono, o pé na bunda”). “Eu queria uma vida mais simples” (“Lá vem você romantizando a miséria! ”).
E se tem outra coisa de que peguei ranço foi da expressão “pegar ranço”.
Porque ranço a gente não pega: a gente garra.

EDUARDO AFFONSO. Disponível em: https://lulacerda.ig.com.br/opiniao-por-eduardo-affonso-ranco/?fbclid=IwAR0pZcsdzkRpAM_vRZQutY39e6erkEnGqhrVhaGAa50jWd7rWxwg2BAkQUw

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